fotografia por renan benedito

espiralados

alberto de lima
2 min readApr 28, 2020

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os dias tornam-se infinitamente cíclicos, trágicos
os bichos de estimação de minha avó continuam, todas as noites nas horas letárgicas, numa posição fetal esperando por ela
os dias, infinitamente circulares no cotidiano dos ônibus pela urbanização ensanguentada de nossa sociedade
eles continuam, todos os dias, nesse mesmo movimento circunférico pelas avenidas da cidade
e os meninos intrinsecamente espiralados pelas correntes do dia a dia
vendem suas bugigangas seus adereços
o disfarce da fome das mulheres vindas dos grandes apartamentos
dos homens das obras inacabadas de algum engenheiro bem-sucedido
na torrente de sol infinita de todos os dias os meninos vendendo sua vida a sua fome
com os olhos esfumaçados de maconha para suportar a anti-lombra da ciclicidade diária
à noite bem ao tardar as cabeças só janelas o cansaço a volta o pequeno jantar materno à espera
os meninos às noites faminfinitas às janelas suas cabeças mirando o paradoxo das casas
a incongruência das grandes disparidades e o medo da cor que carrega na pele
meu deus os meninos dissolúveis mirando um não lugar
algum tipo de futuro longínquo inalcançável

o amanhecer soturno dos dias vestido de uma mesma roupagem que agora se tornou irreconhecível pelo desbotamento
a mesma cara de minha mãe desfalecida pelo cansaço
as notícias cotidianas em horário de almoço de estupros infantis e feminicídio
a mesma ânsia o mesmo vômito a mesma anorexia perante a rotatividade das estatísticas
as meninas transvividas sendo pisoteadas pela grande metrópole
estampando em seus decotes e coloridos a hipocrisia desses dias circulamente infinitos, meu deus
as gargalhadas os apontamentos os cochichos as traições os desejos os fetiches a injúria da subordinação misógina

os dias, meu deus, silenciosamente cíclicos e aterrorizantes

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